Quantas pessoas você conhece que são técnicas em Enologia? Pois é se você respondeu nenhuma, meus parabéns, são poucos que conhecem. Outra resposta possível seria: “mas que diabo é enologia e o que eu tenho a ver com isso?”, a qual eu considero extremamente aceitável na sociedade em que vivemos.

Bom, “eno” vem do grego “oeno”que significa vinho e “logia” vem também do grego e significa estudo. Enologia é, portanto o estudo do vinho. E eu sou o cara que estudou o vinho; o enólogo não praticante do título.

Eu sempre gostei de achar que eu era o cientista do vinho. Não sei, parecia dar uma certa pompa a mais para todas as práticas as quais envolviam o nosso objeto de estudo. Na realidade, eu concluía que o curso estava mais para uma engenharia (sem desenho, sem cálculo, sem física, com um pouco de química) por lidar diretamente com o dia-a-dia de uma fábrica (no caso da produção de vinho, nós as chamamos de cantinas ou vinícolas).

Finalmente, chegamos à parte mais aguardada. Eu quero trazer algumas das técnicas e fundamentos inusitados que eu aprendi durante três anos e que hoje vão achar uma serventia.

O gás milagroso

No meio do discurso da nossa formatura havia uma frase que representa muito bem o nosso curso de enologia: “O SO2 é meu pastor e nada me faltará”. O que para qualquer pessoa sã parece um devaneio absurdo de alguma viagem extrema de ácido, para nós era apenas a forma escrita de um sentimento único que nutríamos por esse gás. Amor. Com certeza era amor.

Olhando de fora, você deve estar achando uma maluquice tremenda nutrir uma paixão por um gás. Mas eu explico: ele realmente salvava (e constantemente salva, por todas as cantinas do país) a nossa pele em muitas situações. Vamos à grande estrela.

O SO2, conhecido pelos químicos do mundo afora como Dióxido de enxofre ou anidrido sulfuroso, é um gás originário da queima do enxofre no ar. Há muito se conhecia sua capacidade desinfetante, sendo utilizado pelos romanos para higienizar barris e instalações. As funções desse gás não param por aí. Essa mesma capacidade desinfetante o permite “salvar” os vinhos de um de seus piores algozes: os microrganismos (não se preocupem mais tarde eles voltam como mocinhos).

Vinho é feito a partir de uvas (eu não comentei sobre isso, mas esperei que vocês já soubessem), mais precisamente a partir da fermentação das mesmas. O ecossistema extremamente propício das uvas esmagadas à contaminação de microrganismos sempre foi um empecilho para a produção de vinhos. Foi então que algum maluco deve ter pensado: “humm, se o dióxido de enxofre consegue desinfetar as bactérias do chão da minha fábrica, o que me impede de colocar ele dentro do meu produto e tirar as bactérias de dentro dele também?”. Ok, provavelmente não foi beeeem assim, mas eu gosto de imaginar que foi. No final deu certo e virou um sucesso, o SO2passou a ser utilizado amplamente na indústria por sua ação bactericida e começou-se a descobrir outras de suas funções.

Quase todos os grandes problemas que um vinho ou um mosto (esse o termo correto para “uva esmagada”) podem passar são corrigidos com alguma dose de SO2.

Desde muito tempo se sabe que, ao deixar uvas esmagadas repousando em um recipiente, elas irão fermentar. E, o que pode parecer uma prova irrefutável para a teoria abiogênica, se deve apenas ao fato de que a própria uva possui uma significativa quantidade de leveduras em sua película (que é o termo correto para a “casca” da uva), que, uma vez em contato com a grande concentração de açucares da baga (por sinal, é incorreto chamar os “grãos” de uva de “grãos”. Quem tem grão é milho, uva tem bagas ou bagos) acaba realizando uma fermentação. Muito mais tarde, após muito isolamento de leveduras, se percebeu que algumas davam origem a um produto mais agradável e se buscou uma maneira de utilizar essas boas leveduras com mais frequência (por essas eu me refiro a uma cepa praticamente, a Saccharomyces cerevisiae). A questão é que, se colocadas no mosto, a cerevisiae precisaria batalhar com as outras várias leveduras já presentes ali. Eis que o nosso herói não nos deixaria na mão. O SO2 tem um efeito que diminui a atividade de leveduras bloqueando o oxigênio necessário a elas e até mesmo invadindo o covil do vilão, entrando nas estruturas das leveduras e as danificando por dentro. Assim o mosto fica seguro de fermentações indesejadas e as nossas amigas cerevisiaepodem chegar e realizar o trabalho para o qual foram escravizadas. Um plus: o SO2 não tem tanto efeito sobre as nossas irmãs cerivisiae quanto tem com as outras castas; ele sabe, portanto, reconhecer os seus aliados.

Para não deixar faltando, o magnifico SO2ainda possui alguns outros (super) poderes:

  • ação antioxidásica: ele chega no mundaréu de enzimas prontas para oxidar nosso vinho e fala para elas: “hoje não”;
  • ação antioxidante (não é a mesma coisa que antioxidásica): ele ganha na corrida dos compostos que não podem ser oxidados e é ele oxidado primeiro;
  • ação dissolvente: no vinho nós sempre buscamos uma cor viva e marcante.

Entretanto, isso não é facilmente obtido naturalmente, visto que os compostos de cor são geralmente resistentes a se incorporarem integralmente no líquido. O nosso amigo SO2 entra também nessa etapa, “bagunçando” os pigmentos e tornando-os mais fáceis de absorver pelo mosto.

Ele também é muito barato e acessível além de ser fácil utilização. Os hereges que não aceitam a palavra do SO2 podem me acusar de enviesado então, como disclaimer: o SO2 também pode ser um dos responsáveis pela sua dor de cabeça no dia seguinte e, se mal empregado, pode resultar em gostos e cheiros desagradáveis.

Mas vamos lembrá-lo por seus acertos, não por seus erros.

Os microrganismos amigos

Até agora eu posso ter parecido um pouco duro com os microrganismos, porém, na verdade, eu gosto muito deles. Ok. De alguns. Digamos que de milhões se salvam uns…três. É, por aí. Mas esses três, como são úteis!

Deu para ver até agora que nós enólogos não temos nem dó nem piedade de escravizar as S. cerevisiae para nosso bel prazer; portanto a nossa ganância e falta de empatia para com microrganismos não nos permitiria parar por aí. De fato, além de leveduras selecionadas nossos olheiros conseguiram detectar prodígios em mais duas áreas: bactérias lácticas e bactérias acéticas.

Primeiramente nos dedicaremos às leveduras. Outrora nós pensávamos que coisas aconteciam porque sim: uma comida deixada em cima da mesa estraga porque aparecem bichinhos que a estragam. Nada mais justo. No entanto, com o advento do curiosocientista, a vida começou a ganhar explicações. Uma que descobrimos (a qual eu considero extremamente relevante para a sobrevivência da humanidade) foi a dinâmica da fermentação do açúcar. Para o nosso querido alcoólatra no bar da esquina (uma questão que sempre me afligiu durante o minha vida de estudante de bebidas alcoólicas é o fato de nós enólogos produzirmos algo que destrói vidas e pessoas. Deep thoughts, sempre povoaram e me tiraram noites de sono) nada muda. Ele continua bebendo sua bebida. Entretanto, o fazedor dessa bebida agora sabe da onde ela vem, podendo assim, ao menos tentar controla-la.

Por que uma uva sozinha não fermenta, mas seu mosto sim? Simplesmente porque o açúcar está contido no interior da baga e as leveduras se mantêm na sua película. Assim, a uva está protegida de fermentações até o momento em que é rompida. Mas nós não queremos uma fermentação? Queremos. Mas queremos uma fermentação estável, a qual dê um bom conteúdo de álcool, não demore muito tempo, não gere outros compostos e consiga fermentar praticamente todo o conteúdo de açúcar. E as leveduras da uva (mais um termo técnico, nós as chamamos de “leveduras índigenas”) não são capazes de obter todas essas qualificações. As Saccharomyces cerevisiae, nossas estrelas, acabam nos salvando nessa empreitada.

Elas têm praticamente o monopólio das fermentações apreciadas por humanos (vinho, cerveja, pão, entre outras). O seu uso é bem simples: estando no espectro de temperatura correto, tendo nutrientes e uma certa dose de oxigênio, farão seu trabalho muito bem. E, para a conveniência delas, o limite de álcool em uma garrafa de vinho é de 15%, exatamente o limite de álcool o qual elas suportam. Isso significa que uma vez que cheguem à concentração de álcool que nós desejamos elas param sozinhas. É quase uma automação natural.

O carvalho francês

“Esse vinho tem um bom aroma de carvalho”, “esse vinho é produzido repousando por três anos em carvalho francês”. Qual é a dos apreciadores de vinho com essa maldita árvore? E, se é tão bom colocar o vinho em carvalho, por que eu não posso colocar o meu suco de laranja num barril de carvalho? Temos aí muitas questões geradas depois de muito ouvir aquele entendedor de vinho chato metendo o nariz na taça e falando baboseiras sobre carvalho.

Mesmo eu ficando um pouco irritado com esses comentários vazios sobre vinhos (seria uma boa ideia para um texto falar sobre o que faz um vinho ser bom), devo dar o braço a torcer: o carvalho é realmente uma peça importante no quebra cabeça que é a enologia.

Mas por que francês? Só porque eles são metidos a entendidos em vinho? Bom, tem lá seu fundo de verdade que eles entendem muito de vinho e foram os principais produtores e inovadores por muito tempo. O carvalho deles, por outro lado, é especial. Dizendo simplesmente, os únicos carvalhos utilizáveis para a enologia no mundo têm sua origem na França, na Califórnia e no leste europeu. E só esses servem. Não adianta plantar um carvalho no Brasil e usar para fazer vinho. Não vai dar certo. Mas eu explico o porquê.

As árvores, quando crescem, dependem de alguns fatores, dentre eles um muito importante é a temperatura. A temperatura regula o quão rápido uma planta cresce. Maior temperatura, crescimento mais acelerado. Um crescimento mais acelerado gera poros maiores na madeira, pois o tecido vivo dela precisa se esticar mais do que se crescesse num clima mais ameno. Na hora de fazer uma barrica de carvalho (que por sinal para se chamar barrica precisa ter exato 225 L), nós buscamos poros de um tamanho específico: grande o suficiente para permitir que uma pequena quantidade de ar entre em contato com o vinho e pequeno o bastante para que o vinho não escorra nem que a carga de oxigênio seja muito grande. Os carvalhos plantados em clima tropical não nos proporcionam isso, enquanto os de clima temperado, sim.

Outro fato inusitado sobre carvalhos é gosto que eles passam. Para dar, vejamos, um gostinho: carvalho francês = baunilha e coco; carvalho americano = café e chocolate. Isso eu deixo para um próximo texto tratando de aromas e gostos no vinho, já que agora está acabando meu papel e eu tenho tantas outras coisas para falar sobre esse maravilhoso mundo da fabricação de bebidas alcoólicas, aquelas que esquentam o coração e nos ajudam a esquecer dos problemas dessa nossa vida.


Augusto Cainelli(inventem um apelido pra mim please). Nunca achei que eu ia dar um carteiraço desse na minha vida mas vamos lá: sou técnico em viticultura e enologia pelo IFRS e atualmente curso o segundo semestre de Engenharia Química na UFRGS. Meu sonho é conseguir aliar as coisas que eu realmente amo nessa vida: romances policiais, jornalismo investigativo,counter strike, Roma antiga, técnicas de culinária francesa, geopolítica mundial, interpretações profundas de filmes e séries, produção musical, e essa lista não acaba mais. Enquanto eu tento organizar tudo isso em minha mente, eu incomodo as pessoas a minha volta com informações aleatórias sobre essas minhas paixões.