Ainda na pegada de mulheres pesquisadoras, desta vez fui conversar com a Marta Marcondes, professora, pesquisadora e ativista ambiental na região do Grande ABC (SP). Ela é uma das pessoas mais incríveis que tive a oportunidade de conhecer, justamente pelo ativismo ambiental. Ela acompanha há anos a  situação de alguns rios da região e do reservatório Billings; foi para Mariana e, recentemente, para Brumadinho acompanhar a situação dos rios atingidos pelo rompimento das barragens.

Conte um pouco sobre você, de onde é, o que estudou, um pouco sobre a sua pesquisa.

Eu sou de São Caetano do Sul, nascida e criada aqui, por uma família de baianos que amo. Embora não sejam minha família biológica, foram as pessoas que me acolheram, são os pais que me fizeram ser quem eu sou hoje.

Eu fiz biologia, ciências biológicas, na extinta UniABC, era FEC do ABC (Faculdade de Ciência e Cultura do ABC), que depois virou UniABC. Comecei o curso em 1980 e me formei em 1985 em ciências biológicas, depois fiz uma especialização em ecologia, na universidade São Judas. Depois fiz meu mestrado na Universidade São Marcos, na área de políticas públicas ambientais. Trabalhei com a parte de comunidades tradicionais, o quanto estas preservam o meio ambiente. Trabalhei com aldeia indígena, que é a aldeia Krukutu. Tenho especialização em morfologia, sou morfologista originalmente, pela UNIFESP, antiga escola paulista de medicina.

E me especializei em recursos hídricos. Eu comecei quando era estudante da graduação, que é desde quando eu estudo o reservatório Billings e nossos rios e córregos.
Morei fora um tempo, na Espanha, estudando. Fiquei lá dois anos para poder conhecer um pouco sobre outro país. Foi legal porque eu estudava toda a parte de fungos de solo, como fazer com que o solo tenha fertilidade novamente.

Meu doutorado foi com a parte de bactérias, determinação de bactérias, recursos hídricos.

Como você se interessou pela área de meio ambiente, em especial pela educação ambiental, políticas públicas ambientais e de saúde?

Na realidade, esta área de meio ambiente e educação ambiental é uma coisa que, desde a adolescência, no ensino médio, começamos com uma militância ambiental na região do ABC, com a defesa do reservatório Billings, principalmente, com esta questão da poluição. Eu comecei minha vida na questão da militância para a área ambiental, para a proteção de todas as formas: proteção da Mata Atlântica, proteção do nosso reservatório, sempre atuando na militância ambiental. Ai eu achei que o melhor curso para fazer era ciências biológicas. Fiz e continuei na área.

A educação ambiental surgiu em minha vida em 1990, porque, quando eu cheguei da Espanha, tentei continuar na área que eu estava – de fungos e solo -, mas no Brasil não tinha nada do que a gente estava trabalhando. Comecei, então, a dar aula na UniABC, onde eu estudei. Foi criada em São Caetano a escola de ecologia.

Na realidade estávamos preparando o Brasil para a Rio92 e começamos a discutir a educação ambiental nesta época. Lá na escola de ecologia, montamos um projeto e eu fiquei responsável pela área de educação ambiental, que eu nem sabia direito o que era.

Fui para a Rio92. A gente discutiu muito e eu cresci demais com este aprendizado e nós criamos os encontros regionais de educação ambiental da baixada santista e do grande ABC. Realizamos 18 encontros regionais em vários locais.

Enquanto fazia minha especialização na São Judas, conheci o Luiz Afonso, professor da Fundação Santo André, que foi quem realmente começou a falar comigo sobre educação ambiental. Agora imagina: a gente estava voltando da Rio92, estava trazendo essa coisa de educação ambiental. O que é isso? Quais os documentos? O que a gente tinha? O Luiz Afonso me passou bastante material, conversamos demais, foi muito legal, um aprendizado.

A gente começou a fazer os encontros regionais de educação ambiental e a secretaria estadual de meio ambiente criou os núcleos regionais de educação ambiental. Depois disso nunca mais sai da educação ambiental.

E isso é um aprendizado constante, porque a gente começou a perceber que isso já vinha sendo discutido há muito tempo, que a saúde está completamente ligada à questão ambiental. Para você ter saúde, na realidade, você precisa de um ambiente saudável. Não adiantava nada a gente tentar preservar um ambiente se a gente não trabalhasse com as pessoas que usam estes espaços, que, como nós, utilizam água, solo para produção de alimentos, geração de resíduos. Por isso eu pensei “Poxa, a área de educação ambiental é muito importante para a gente despertar esta consciência nas pessoas”.

Como foi a trajetória de se tornar pesquisadora?

Quando eu voltei da Espanha e comecei a trabalhar com educação ambiental. Eu percebi que a gente precisava escrever sobre a educação ambiental, ter mecanismos de avaliação, método para falar de educação ambiental. Então a gente começou no sentido de ter a educação ambiental como ciência.

Quando eu morei na Espanha, fiquei num laboratório, na estação experimental em Granada, no sul da Espanha. Para mim, foi a maior escola que eu tive sobre fazer ciências, sobre ter um método, rigor, antes de começar qualquer pesquisa. Fazer a revisão de literatura, tudo o que você faz tem de ser replicado e ter seriedade nisso. Só tendo seriedade é que as pessoas vão acreditar no seu trabalho.

Quando cheguei no Brasil, eu era dessa área que eu trabalhava na Espanha, biologia molecular para solo. Procurei lá no botânico a doutora Sandra Truffen, e ela falou “Vai para outra área, para a educação ambiental do meio ambiente, já que você gosta tanto”. Eu me engrenei na educação ambiental e comecei a escrever sobre este tema, articular com outras pessoas. Começamos a produzir materiais, começamos a cria elementos para avaliação.

Foi bem bacana. Eu tinha uma chefe na escola de ecologia, a professora Dagmar Roveratti, que me ensinou muito sobre escrever artigo, como publicar. Foi bem bacana.

Marta em seu laboratório, em mais um dia de trabalho.

Como é ser mulher e fazer ciência?

A gente sabe que no Brasil é difícil essa coisa de ser mulher, de ter seu espaço na ciência , porque infelizmente ainda temos uma questão muito machista dentro da área de ciência. Mas, como dizia minha orientadora do mestrado, “Quando você tem dados concretos e faz uma ciência séria, ninguém pode te questionar”. Até te questionam tecnicamente, e a gente pode discutir, mas não por falta de rigor científico. Não é tranquilo, é uma coisa bem complicada, porque as pessoas, principalmente os homens, se sentem ameaçados pela presença de uma mulher fazendo ciência, indo lá, e conseguido recursos para pesquisa, saindo na frente.

Na realidade, você tem homens de todos os jeitos, aqueles que são parceiros, como falei sobre o Luiz Afonso; e tem aqueles que querem que você fique no seu canto. Tem de tudo um pouco.

Eu acho que nós, mulheres, estamos assumindo papéis importantes e não podemos retroceder neste caminho que alcançamos. Por isso estamos formando novas cientistas e mulheres que tenham coragem. Mas é uma delícia você ver que sua pesquisa está tomando vulto e as pessoas estão te respeitando por isso. É muito gostoso.

Você trabalha com políticas públicas ambientais e tem um trabalho muito forte na questão de ecologia, com foco na questão das águas. Como você vê o atual cenário de políticas públicas ambientais no Brasil?

O atual cenário das políticas pública ambientais…. Vou ser bem sincera. Eu tenho bastante receio do cenário que se está configurando no Brasil. Eu sou originalmente militante ambiental e não tenho vergonha e nem medo de falar isso, porque acho que a gente precisa se posicionar.

Mas nós vamos precisar ser bem firmes com o nosso propósito de proteção aos biomas e o que nos resta de Mata Atlântica, Cerrado, Caatinga e todos os biomas brasileiros que estão extremamente ameaçados por um trator. Tudo indica que o quanto pudermos ser tratorados com esta mudança que se configura seremos. Mas temos uma coisa importante, que é uma constituição que tem um artigo que nos protege e acho que a gente não pode de maneira nenhuma se curvar e deixar que este artigo não seja respeitado.

E nós temos muitos avanços nas políticas públicas ambientais, por exemplo, a lei específica da Billings, a política nacional de resíduos sólidos, os planos municipais de mata atlântica. E acho que a gente deve tomar estes espaços de discussões, como o comitê de bacias hidrográficas, em que a gente vem participando destas discussões, envolvendo as pessoas. A gente pode pelo menos manter o que já conquistamos.

Quais as perspectivas futuras?

Eu tenho bastante medo deste cenário futuro, deste cenário que está se configurando. Mas eu volto a falar para você, tenho uma força muito grande que me move, que é o fato de estar em sala de aula, o fato poder orientar pesquisa trabalhos de mestrado, iniciação cientifica, doutorado. Eu coordeno um laboratório de análise ambiental e este grupo bem autêntico – o grupo que trabalho no IPH – de pessoas que são muito envolvidas no processo de pesquisa.

Acho que a minha missão não é nem desenvolver grandes coisas na pesquisa, eu não tenho a ganância de fazer alguma coisa inédita. Eu não tenho este anseio. Acho que pelo fato de ser professora, acredito na formação de pessoas que pesquisem, por exemplo, um farmacêutico, dentista, médico, fisioterapeuta, que consiga olhar para os dados, analisar e usar esta análise para o benefícios das pessoas. Tomar decisões a partir deste dados, decisões muitas vezes políticas, mas que sejam o melhor para a qualidade de vida das pessoas.

Tenho um amigo que sempre me pergunta se eu não tenho vontade de ter uma patente e tal. Eu falo que não, na realidade eu tenho vontade de ser uma ponte para conectar aquele aluno, aquela pessoa que tenha vontade de vir e fazer pesquisa, tenha o espaço para fazer isso. Eu adoro ensinar a escrever artigo, adoro dar o caminho das pedras para você publicar. E não tenho a ânsia de publicar na melhor revista, ser a melhor pesquisadora, se eu puder ser uma facilitadora eu acho que estarei cumprindo meu papel.

Você é a organizadora do Pint of Science no ABC, faz parte do Carecas de Saber (canal no youtube voltado para o ENEM/Vestibular), também é professora universitária e ativista ambiental. Considerando todas esta bagagem, como você vê a divulgação científica e qual a importância dela?

São muitas coisas, né? Acho que existe toda uma produção científica muito importante. É oque a gente sempre brinca lá no Pint, a gente fala de tudo… Por exemplo, eu estar conversando com você no celular agora só foi possível por conta de alguém que pesquisou e viu que dava certo. Tudo na nossa vida é uma pesquisa.

Só que as pessoas acham que o pesquisador, a universidade são coisas muito distantes, distantes de todo mundo. Pensam que jamais poderão entrar num laboratório, numa biblioteca de uma universidade porque não estão matriculados, que a universidade e só para o pessoal de jaleco… E eu acho que o momento que a gente pode discutir a ciência no bar, como é a proposta do Pint, é um momento extremamente importante.

É o momento em que você fala assim “Poxa! Eu posso ir, posso discutir o resultado da minha pesquisa e posso trazer os resultados da minha pesquisa, que é esse”. E mostrar que o cientista é um cara comum, como outro qualquer que sabe fazer o quê? Sabe analisar dados e informações. Eu acho que o melhor do cientista é saber fazer a análise correta destes dados para que estes dados possam melhorar a qualidade de vida das pessoas.

Eu adoro. Acho que a ciência básica tem de existir sim, porque boa parte do que eu faço se origina da ciência básica. Por exemplo um eletrodo, um equipamento, um reagente químico surgiram de uma pesquisa que é de base. Mas o que eu mais gosto de fazer é a ciência aplicada. O que eu faço eu posso passar para as pessoas e posso de alguma maneira contribuir para melhorar a vida destas pessoas. Então é isso, acho que a importância da divulgação científica é mostrar para as pessoas que existe um bando de maluco, que nem a gente, e que está a fim de produzir conhecimento e fazer com que as pessoas tenham acesso a este conhecimento. Acho que o importante é isso, que todos tenham acesso ao conhecimento.

Infelizmente tem algumas pessoas que preferem manter os dados, as informações para um número mais restrito de pessoas. Já eu penso “Vamos divulgar! Quanto mais pessoas souberem , melhor”. É essa a ideia da educação ambiental. Quanto mais pessoas souberem, melhor; quanto mais pessoas tiverem acesso, melhor. Por isso que eu acho que a divulgação científica é extremamente importante e necessária não só para o Brasil, mas para qualquer país deste planeta.

E eu acho que tirar das prateleiras das universidades os trabalhos que são feitos é muito importante. Mas óbvio que a gente não pode ficar com aquele discurso da ciência, do ‘cientifiques’. A gente precisa ter um outro tipo de discurso, mais acessível para as pessoas entenderem. As pessoas tem de saber que isso é importante.

Nós, cientistas, temos de ter uma escuta mais ativa para perceber que, às vezes, as pessoas têm dificuldade de entender um termo técnico e que a gente pode facilitar isso. Na hora que a população percebe a importância da ciência, quando algum órgão de fomento for destinar dinheiro para pequisa, as pessoas vão dizer “É isso ai! Tem de dar dinheiro mesmo!”.

Como é seu trabalho com as comunidades tradicionais?

O trabalho que eu faço com as comunidades tradicionais é procurar dar um empoderamento para esta comunidade para que eles possam se manter nas suas áreas originais. É muito fácil chegar e dizer que os indígenas, os ribeirinhos ou o quilombola não tem direito à sua terra. O difícil é dizer que eles têm este direito e que eles têm de se manter nestas áreas.

Quando você tem as comunidades tradicionais em áreas que costumam ser áreas protegidas, eles, com certeza, mantêm uma integridade e um equilíbrio muito maior nestas áreas. Então o que a gente tenta fazer é proporcionar que eles fiquem nestas áreas.

Por exemplo, agora a gente está trabalhando com a construção de banheiros que são banheiros com biodigestores, na aldeia Guarapaju, que fica na beira do reservatório Billings.

Gostaria de dizer algo mais? Mandar algum recado?

Como sempre adorei trabalhar com comunidades tradicionais, com esse conhecimento popular, gostaria de dizer como é importante a percepção das pessoas que tem este conhecimento popular. Meu recado é que a gente deveria ouvir mais este conhecimento popular e, como cientistas e pesquisadores, usar a nossa expertise, olhar os dados, analisar os dados e transformar isso em informações que sejam importantes para a sociedade de maneira geral. Acho que a gente deveria ter uma escuta mais ativa para tudo e perceber um pouco melhor o que está no nosso entorno, o quanto o conhecimento popular é importante, o quanto observar o ambiente é importante. Olhar de maneira diferenciada para os espaços, os ambientes naturais e aprender, voltar a ter a sensibilidade que a gente tinha quando éramos caçadores coletores e aprendemos observando os outros organismos. Acho que a gente perdeu um pouco este feeling, acho que a gente tem de voltar a ter um pouco desta sensibilidade para a gente continuar aprendendo com estes ambientes.

Eu estou muito preocupada com a questão ambiental. Não estou à vontade mesmo com tudo que está se configurando no Brasil. É uma pena que as pessoas achem que a gente pode fazer o que quiser com os ambientes . Eu vejo diariamente o rio se tornando esgoto e as coisas acontecendo. Na hora que a gente produz dados, a gente tem como discutir de igual para igual com as pessoas que estão trabalhando de maneira degradadora para o nosso ambiente.