Confesso que tive dificuldades para encontrar quem seria a próxima homenageada da série Grandes Mulheres da História. Não por falta de candidatas, mas porque estes textos refletem meu atual estado de espírito e como essas mulheres mudam constantemente essa que vos escreve.

O primeiro texto sobre Nise da Silveira saiu de um encontro que tive com ela anos atrás quando iniciei minhas pesquisas em psicologia e psicanálise, porque nerd tem dessas, né? Estuda sobre tudo e nunca está satisfeito. E esse sentimento deviante que me possui desde a mocidade me fez esbarrar na figura de Carolina de Jesus, a quem este singelo texto se dedica.

Nesse processo de me encontrar e de entender qual meu lugar nesse mundo, nessa sociedade, regressei ao universo das letras, aquele que explorei primeiro, antes de todos os outros que percorri. Lá no Teatro da Rotina, espaço cultural que diariamente me dedico com outros vinte companheiros do coletivo, recebi o chamado de criar um projeto literário. Pra quem não sabe, somos um teatro independente, isso quer dizer que não temos apoio financeiro de ninguém, não frequentamos os grandes círculos intelectuais, não somos contemplados pelas verbas distribuídas por aí. Somos independentes, somos marginais.

E a palavra marginal me acompanha desde sempre, na maioria das vezes eu a negava, agora pago a língua e me incluo nessa galera que faz arte com o pouco que se tem. E, na busca de autoras que assim também fizeram, me lembrei dela, da Carolina de Jesus, catadora de papel que, despejada da sociedade, escreveu uma das mais belas e importantes obras da literatura marginal; Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada.

Carolina Maria de Jesus, mulher, negra, mineira, nasceu em 14 de março de 1914 em uma comunidade rural. Pais analfabetos, infância difícil e violenta. A autora é daquelas flores que nascem no concreto (perdoem a frase piegas, mas é pura  verdade). Ainda pequena, a patroa de sua mãe decidiu pagar seus estudos e aos sete anos foi obrigada a frequentar a escola. Infelizmente, não ficou por lá muito tempo, mas foi o suficiente para que aprendesse a ler e a escrever e, o melhor, a pegar gosto pela coisa.

Em 1937, após ser falsamente acusada de roubo, Carolina decide se mudar para São Paulo. Sem dinheiro, ela viaja a pé de Sacramento até a Capital paulistana e constrói com as próprias mãos sua casa feita de papelão, madeira e qualquer coisa que encontrava pelo caminho. Foi trabalhar em casa de família e lá preferia se trancar na biblioteca dos patrões aos finais de semana ao invés de sair.

Dez anos depois, grávida do primeiro filho, já não podia mais ser doméstica, ficou desempregada. Até que veio um político recém eleito e, como quem varre a rua, joga 50 mil pessoas em situação marginalizada no meio do nada, formando assim a favela do Canindé. Aqui ela já havia começado o trabalho de catadora de papel, e, entre o material recolhido de noite nas ruas, estavam cadernos em branco e é nesse momento que a literatura brasileira  ganha uma de suas escritoras mais brilhantes.

Diário de uma Refavelada

Nos cadernos que encontrava no trabalho, Carolina fazia seu diário, foram mais de vinte escritos até que em 1955 começou a escrever aquele que seria seu primeiro livro publicado. A fome apertava. E tão grande quanto o vazio de seu estômago era a vontade de escrever, e vazia mesmo era aquela sociedade que tentou de todas as formas possíveis matar o sonho de quem se recusava a ser estatística.

Nos papéis vindos do lixo retratava o dia-a-dia difícil da comunidade recém formada, as dores da miséria, sem pretensões, mirando apenas na necessidade brutal que sentia de escrever para viver e não para sobreviver.

Em 1960, o jornalista Audálio Dantas ajuda a publicar “Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada”. A tiragem inicial foi de 10 mil cópias, todas esgotadas em apenas uma semana. Ao todo seriam vendidas 1 milhão de cópias de sua primeira obra, se tornando uma das mais importantes escritoras de seu tempo. Teve o trabalho traduzido em 14 idiomas e sucesso nos Estados Unidos, mas,  ao contrário do que se pensa, o dinheiro não a tornou rica.

Com direito a apenas 10% do valor de cada cópia, contra 30% de Dantas, Carolina não tinha poder de decisão sobre as traduções, nem sobre os rumos que tomaria sua obra. Não viveu mais na miséria, tinha agora uma boa casa para morar e como pagar os estudos dos filhos, mas mesmo tendo sucesso, a distribuição da renda não foi favorável à autora. Não preciso nem dizer nada, não é mesmo?

Se você quer saber quantos filhos ela teve, quem eram os pais e por aí vai está no texto errado. Aliás, só citei o primeiro filho para contextualizar o motivo dela ter sido demitida e não ser mais aceita em casas de família. Aqui falamos da escritora, poeta e compositora que levou a voz da favela para o mundo e que revela como são passados para trás os pretos pobres que tentam dar um salto de seu barraco para algum outro lugar.

“Não digam que fui rebotalho,

que vivi à margem da vida.

Digam que eu procurava trabalho,

mas fui sempre preterida.

Digam ao povo brasileiro

que meu sonho era ser escritora,

mas eu não tinha dinheiro

para pagar uma editora.” – Carolina de Jesus

Tenho tanto a dizer sobre Carolina de Jesus, tanto a dizer sobre ela, tanto a dizer para ela se isso ainda fosse possível. Tanto a agradecer, tanto a me desculpar. Principalmente a me desculpar porque desde 1960 muitas outras Carolinas nasceram e morreram em algum lugar desses que o IBGE passa e nunca mais volta, nesses quartos de despejo pelo Brasil. Há tanto a se dizer sobre ela, mas acima de tudo há muito mais que se aprender com ela.

Foram 4 livros em vida e mais 5 póstumos, um deles lançado inclusive este ano. Ou seja, 9 obras para descobrir você mesmo a Carolina de Jesus, que eu na minha ignorância posso apenas humildemente indicar e encarecidamente pedir que mantenham vivo o manifesto da maior escritora marginal de todos os tempos.

Pra não você não ter desculpa de não ler vou deixar aqui os nomes de todos os livros e de coração espero que este texto tenha te instigado a saber mais sobre mais uma Grande Mulher da História.

Bibliografia:

  • Quarto de Despejo (1960)
  • Casa de Alvenaria (1961)
  • Pedaços de Fome (1963)
  • Provérbios (1963)
  • Diário de Bitta (1982)
  • Meu Estranho Diário (1996)
  • Antologia Pessoal (1996)
  • Onde Estaes Felicidade (2014)
  • Meu sonho é escrever… contos inéditos e outros escritos (2018)

Para dar os devidos créditos no texto tem um poema de Carolina de Jesus, tem citação à Refavela do Gilberto Gil e tem uma breve menção de Um Homem Na Estrada dos Racionais Mc´s.

As informações que não vieram da minha cachola foram pesquisadas no:

Catálogo de Escritoras Brasileiras – Maria Madalena Magnabosco e Graciela Ravetti

Wikipedia – Quem nunca, né?

E uma porção enorme de mini-docs e entrevistas disponíveis no Youtube

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Giovanna Cecchi é jornalista, escritora e cantora, atualmente faz estudos em dramaturgia no Teatro da Rotina e administra sua marca, a Benzadeusa. Nerd desde que se entende por gente, tem uma banda com seu irmão e é fã incondicional de Rita Lee. Ama os animais, as plantas, batata assada e café com leite. Não tem talento para números e já se acostumou a viver das coisas que a natureza dá.