Esse é o primeiro de uma série de textos que escreverei sobre a mulher na ciência, literatura e música, que, convenientemente, será postado em março, mês este dedicado mundialmente às mulheres, e erroneamente apontado como homenagem quando a palavra de ordem é luta. Ativismos à parte, a ideia de escrever sobre mulheres veio não somente do fato de eu ser uma, mas do meu encontro com a figura da mulher sobre a qual vou falar agora.

Não me lembro com precisão da data, mas há alguns anos me vi mergulhando no universo da psicologia, psicanálise e psiquiatria, não por escolha profissional, e sim por lazer. A mente sempre foi um assunto intrigante para mim e após uma década ouvindo “você é meio doidinha, né?”, decidi abraçar o termo e, de maluca beleza mutante que dizia que “louco é quem me diz que não é feliz”, passei a questionar o real significado da palavra e buscar conhecimento sobre as doenças que afetam a mente. Era muito legal a minha luta pelo não convencional, mas me faltava conhecimento para respeitar os profissionais e pacientes que travam batalhas diárias contra problemas invisíveis à sociedade.

Mergulhada em nomes masculinos, Nise da Silveira surgiu para mim como um sopro de humanidade em meio a tantas teorias frias que, sem nenhum decoro, utilizavam o próximo como cobaia para que abastados pesquisadores escrevessem livros renomados e seus nomes na história.

Naquele momento, nascia um amor que surgiu da identificação que senti com Nise, por ser mulher, por simplesmente desprezar a frieza e pelo contato com a arte. A introdução longa se deve pelo fato dessa que vos fala sentir uma necessidade inquietante de “rasgar seda” para a figura a quem este texto é dedicado. Então, antes de a conhecermos, o meu obrigada em nome de todos que estão na luta antimanicomial.

Quem é Nise da Silveira?

Nascida em 1905 no Alagoas, Nise teve a felicidade de vir ao mundo em uma família composta por uma mãe pianista e um pai matemático. De um lado, a ciência e a lógica, do outro, a arte e a emoção. Isso seria fundamental anos depois em sua vida acadêmica, fazendo com que se destacasse entre os demais de seu tempo.

Formou-se na Faculdade de Medicina da Bahia, e é um desperdício absurdo reduzir sua figura à “aluna de Carl Jung”, com quem se correspondeu e criou um estreito laço profissional. A única mulher de sua turma na faculdade e uma das primeiras no Brasil a se formar em medicina, se casou com seu colega Mário Magalhães da Silveira e rejeitou o destino óbvio da maioria das senhoras casadas: ter filhos. Seu legado foi ser genitora da psiquiatria brasileira, sempre contrária aos “tratamentos convencionais” como: eletrochoque, insulinoterapia e a lobotomia.

Sua luta por condições humanitárias para os pacientes e sua relação intrínseca com a arte e literatura levaram Nise ao campo político sendo uma das poucas mulheres a assinar o “Manifesto dos trabalhadores intelectuais ao povo brasileiro”. Em 1936 foi presa por possuir livros marxistas, ficando presa por 18 meses, quando conheceu Graciliano Ramos e acabou por virar personagem do livro “Memórias do Cárcere”. Até aí, nada de novo sob o sol, não é mesmo? Apenas um resumo para todos que pela primeira vez se deparam com a figura incrível que foi Nise da Silveira. Entremos agora no assunto daquilo que seria sua obra de vida.

Chegamos ao Engenho de Dentro

Em 1944 se tornou parte da equipe do Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, no Engenho de Dentro, Rio de Janeiro. Ao se recusar aplicar os “tratamentos tradicionais” , em 46 é transferida para a área de Terapia Ocupacional, totalmente desprezada pelos médicos. As tarefas de limpeza e manutenção que os pacientes faziam sob o pretexto de atividade ocupacional foram, então, substituídas por ateliês de pintura e modelagem. É aqui que começa a magia. Digo isso porque o que vem a seguir é um trabalho humanitário sem precedentes na área.

Ao contrário de seus colegas, Nise não tinha como objetivo fazer seres humanos de cobaias para suas pesquisas, ali era um ser humano exercendo o amor ao próximo, empatia, com o plus de uma psiquiatra altamente qualificada. Com a união do coração e da inteligência, ela revolucionou e ressignificou o tratamento psiquiátrico. Foi aí que pudemos expandir nossos conhecimentos sobre o complexo universo das mentes consideradas até então “perdidas”.

Chamei para a conversa a psicóloga Pryscilla Simieri para que fosse possível analisar minhas percepções sobre o tratamento desenvolvido no Engenho de Dentro e nesse momento descobri coisas que reforçam a necessidade deste texto que vai muito além das pessoais.

Imagens do Inconsciente

Emygdio de Barros, cliente de Nise da Silveira e um dos principais colaboradores do Museu do Inconsciente

Para aqueles acometidos pelos problemas da mente, se comunicar e organizar os pensamentos é uma tarefa da mais alta complexidade, e é aí que a arte entra. Nise começou a perceber padrões nas pinturas, muitos clientes (ah, sim, esqueci de avisar que para Nise não havia a palavra paciente, pois era uma relação de troca) desenhavam círculos, alguns acabavam por aprimorar suas esferas e assim ela viu as “mandalas” como uma tentativa do inconsciente de reorganizar a mente e se expressar.

Nesse período a correspondência com seu conselheiro, Jung, foi muito maior e produtiva, mas, apesar de evidente o avanço nos estudos para a compreensão dos clientes com surtos psicóticos, levou um enorme tempo para que suas ideias passassem a ser pelo menos consideradas. Para aqueles que analisavam, a mente de quem se encontrava em estado de loucura era menos complexa e inferior, assim realmente fica difícil entender e tratar os casos, não é mesmo?

Mas, apesar de ser pioneira em sua área, Nise não está incluída nas grades curriculares das universidades brasileiras. Pryscilla conta que só conheceu seu trabalho quando estagiou em um manicômio. É tão grande a agressividade e falta de estrutura do sistema de saúde mental no país que a fez imaginar que outras possibilidades existiam para aqueles internados em tempo integral por às vezes 8, 10, 20 anos. Como tratar pacientes de ordem psicótica quando o método da palavra, adotado por Freud, já não é eficaz?

Pois bem, os mesmos pensamentos que atordoavam Pryscilla também soaram na cabeça de Nise e é por isso que para mim seu trabalho é tão especial. É nesse momento que ele ganha contornos sociais e deixa de ser um trabalho apenas científico, e sim uma tentativa de criar alternativas para aquilo que eu chamo de depósito de pessoas.

A verdade é que nós duas, Pryscilla e eu, passamos horas e viramos a madrugada dividindo nossas experiências e nossas visitas a hospitais psiquiátricos. Não somente do ponto de vista analítico e profissional, mas também de como nós, seres humanos, nos sentimos ao entrar nestes locais e do espanto sobre o estado zumbificado de muitos que ali vivem, que já tão dopados de substâncias que apagaram não somente qualquer traço de sua personalidade, mas de sua expressão facial.

Pryscilla conta a imensa diferença de quando entrava nas alas com um violão e a apatia dava lugar aos sorrisos e, por alguns momentos, todos ali se lembravam como é ser um cidadão, como é ter dignidade. E, para mim, este foi o maior legado de Nise: devolver a dignidade humana àqueles esquecidos por todos, até por si mesmos. Espero que este texto chegue como um alento no coração daqueles que se propuseram a estudar psiquiatria e que ele seja um chamado para que no presente possamos colocar um fim aos depósitos de gente.

 

 

Dicas:

Gostou? Então faz assim, dá uma olhada nessas dicas para começar a entender mais sobre o assunto:

Livro Holocausto Brasileiro – Daniela Arbex (tem documentário também, mas começa pelo livro, tá?)

Filme Nise, o coração da Loucura (altamente recomendado para começar a adentrar no universo dessa mulher incrível)

Livro Vida e Obra de Nise da Silveira – Fernando Portela Câmara

A seguir só livros da Nise da Silveira:

Jung: vida e obra

Imagens do Inconsciente

Casa das Palmeiras – A emoção de lidar. Uma experiência em psiquiatria.

O mundo das imagens

Cartas a Spinoza

Gatos – A Emoção de lidar

Fontes:

Livro Nise da Silveira: Uma Psiquiatra Rebelde, Ferreira Gullar.

Livro Vida e Obra de Nise da Silveira – Fernando Portela Câmara

Livro Nise da Silveira: Imagens do Inconsciente entre psicologia, arte e política – João A. Frayze-Pereira

E Wikipedia.


Giovanna Cecchi é jornalista, escritora e cantora, atualmente faz estudos em dramaturgia no Teatro da Rotina e administra sua marca, a Benzadeusa. Nerd desde que se entende por gente, tem uma banda com seu irmão e é fã incondicional de Rita Lee. Ama os animais, as plantas, batata assada e café com leite. Não tem talento para números e já se acostumou a viver das coisas que a natureza dá.