Alguém aí já se perguntou qual caminho que um medicamento precisa percorrer para estar na prateleira de uma farmácia? Resolvi escrever este texto de modo a facilitar a compreensão de como os medicamentos saem da “cabeça” de um pesquisador para as prateleiras das farmácias, onde podem ser utilizados pelos pacientes. Para um medicamento que faça passar aquela dorzinha de cabeça chata, ou mesmo as vacinas contra a febre amarela sejam distribuídas ou vendidas, eles precisam passar pelo crivo de testes rigorosos, chamados de testes pré-clínicos e posteriormente pelos testes clínicos.

Antes de tudo, vou contar uma história que muitos dos leitores talvez conheçam. A principal personagem dessa história é um medicamento, conhecido como Talidomida. Lançado no mercado em 1957 na Alemanha, tinha uso sedativo, mas também era capaz de combater enjoos matinais e, rapidamente, foi utilizado com este fim e receitado para mulheres grávidas em vários países do mundo. O medicamento se mostrava promissor, mas algo horrível ocorreu: O medicamento, que fora testado antes da comercialização, causava sérios danos aos fetos, pois atravessava a barreira placentária, e crianças de mães que utilizaram o medicamento nasceram com sérias deformidades físicas, num quadro classificado como focomelia (ausência de braços e pernas). O medicamento não era um problema para mulheres não grávidas, mas este erro sério no crivo científico nessa época gerou toda uma geração de pessoas com deformidades físicas. Este é, sem dúvida, um dos eventos mais representativos da importância dos testes clínicos como fonte confiável de resultados, em que podemos atestar a confiabilidade de um medicamento. Mas o que deu errado?

Muitos alegam que a pressa da indústria farmacêutica em acelerar o lançamento do medicamento no mercado foi a principal razão para este problema. Fazendo jus a causa, naquela época as especificações dos testes de medicamentos eram muito menos rigorosas do que as que temos hoje, e é muito importante perceber que, embora erros fossem cometidos, essa série de problemas e muitos outros sucessivamente deram forma ao modelo de testes clínicos que temos hoje, muito mais seguros (porém, ainda precisam ser constantemente aperfeiçoados). Dito isto, vamos entender como esses testes são, em linha geral, realizados. Esse é um dos temas que creio ser tão importantes de serem compreendidos como a constituição de um país, e nenhum deles é um tema de fato discutido no ensino público brasileiro (mas isso é outra discussão).

Os testes clínicos precisam, antes de tudo, vir resguardados dos resultados obtidos pelos cientistas nos testes pré-clínicos, fase que envolve a descoberta do medicamento, descrição da sua ação no organismo, viabilidade de produção, entre outros. Os testes pré-clínicos envolvem experimentação in vitro e in vivo. Testes in vitro são os testes realizados geralmente em culturas celulares e não envolvem o uso de organismos complexos multicelulares, nestes testes, é possível avaliar os mecanismos gerais de ação do medicamento, seus efeitos sobre a sobrevivência ou morte celular, sua via metabólica e ter uma noção básica da dosagem. Os testes in vivo envolvem o uso de animais para experimentação e é o possível definir as vias metabólicas da ação do medicamento (desta vez envolvendo órgão e um estudo mais detalhado), tempo de permanência no organismo, efeitos colaterais, etc. É importante ressaltar que esses resultados devem ser também replicados na fase clínica, e que o teste pré-clínico funciona como uma triagem. Caso o medicamento seja ineficaz ou tenha efeitos colaterais muito graves, pode nem passar dessa fase.

Com o término dos testes pré-clínicos, é hora de iniciar os trabalhos em humanos. Os testes clínicos são divididos em 4 fases, cada uma com um objetivo específico para que a nova droga possa ser disponibilizada no mercado, a saber:

Fase I: Nesta fase a nova droga a ser testada é distribuída em uma pequena quantidade de pacientes saudáveis e que não apresentem a doença para o qual o medicamento foi projetado. Aqui, dosagem e forma de aplicação (comprimido, injeção, pomada, etc) são definidos, além dos possíveis efeitos colaterais serem identificados.

Fase II: Em seguida, um grupo maior (algumas centenas de pessoas) é testado, os pacientes são, em sua maioria, saudáveis, mas também é dada a oportunidade de que pacientes com a doença sejam submetidos ao tratamento. O maior número de pacientes e a presença de pacientes doentes dá uma melhor visão estatística aos pesquisadores, que nessa fase podem definir a real efetividade da nova droga e sua viabilidade.

Fase III: Aqui, o tratamento experimental é disponibilizado para um grupo de centenas e até alguns milhares de pacientes doentes. Essa fase é muito importante, pois é aqui que os testes estatísticos e comparativos com outras drogas já existentes no mercado com o mesmo objetivo são feitos, além de uma análise dos efeitos colaterais da nova droga nos pacientes alvo.

Fase IV: Se tudo nas outras fases deu certo, há a conferência das respectivas patentes e comercialização da droga. Pelos próximos anos, ela passará por uma análise estatística maior, em que são considerados os efeitos adversos da droga e sua eficácia, seu efeito em diferentes faixas etárias e também do uso no longo prazo para os rins e fígado.

É importante ressaltar que, embora haja muitas fases e que cada uma compreenda um objetivo diferente de pesquisa, os resultados obtidos em uma fase devem ser novamente observados nas seguintes. Muitas vezes um dado medicamento funciona muito bem in vitro, mas não funciona tão bem in vivo, ou mesmo em humanos, e tudo isso tem de ser levado em conta. Testes desse tipo podem levar, desde os testes pré-clínicos, muitos anos. Geralmente o medicamento é disponibilizado em duas décadas, sendo que nesse período ainda estamos falando da fase IV. Tudo isso é muito importante para que seja possível assegurar o máximo de segurança possível de um medicamento e definir quais os seus prós e contras.

Bem, espero ter esclarecido como o processo funciona. Obrigado por acompanharem aqui e até a próxima!

FONTES

Testes clínicos, pela FDA

Departamento de saúde da África do Sul sobre os testes clínicos

Vídeo do Drauzio explicando como funcionam os testes clínicos


André Luiz, estudante de graduação em ciências biomédicas na USP. Apenas um jovem mancebo a procura do seu cantinho no universo, lutando entre a incansável curiosidade (e paradoxalmente ao incansável), procrastinação na frente do vídeo game, Netflix e minha cama. Adoro papos sobre qualquer coisa, um amante das Crônicas de Gelo e Fogo e sempre pensando em pizza.