Raiva! Isso, vamos falar sobre raiva. Não essa aí que corrói os corações. Vamos falar sobre a Raiva, doença viral. Tive a ideia de escrever sobre raiva pois no mês de junho de 2017, mais um caso de raiva humana foi confirmado em Recife, Brasil.

Uma moça dona de um petshop foi chamada para ajudar num resgate de um gatinho que parecia estar envenenado. Eu amo animais e sempre que necessário, também resgato animais. Infelizmente, no caso dessa moça, Adriana, o resgate deu errado. Após ser mordida pelo animal, ela não procurou o Pronto Socorro e 60 dias após, apresentou os primeiros sinais neurológicos e no dia 29/06/17, infelizmente, veio à óbito.

Neste ano, outras duas pessoas morreram de raiva: um senhor no interior da Bahia e uma criança no Tocantins. Todos os três casos, diagnosticados laboratorialmente, foram causados pela variante viral originária de morcegos hematófagos.

Apesar dessas histórias devastadoras para iniciar, acredito que escrevendo sobre isso, compartilhando a informação, poderemos prevenir casos futuros. Vem comigo que é interessante.

A raiva é relatada desde que o mundo é mundo, foi uma das primeiras doenças registradas. A história da Raiva caminha juntinho com a história da humanidade. Pessoal que gosta de História, dá uma conferida na página da Wikipédia que está bem legal.

A raiva é uma zoonose (são aquelas doenças que podem ser transmitidas dos animais ao ser humano ou do ser humano aos animais), uma doença em quase todos os casos FATAL, causada por um vírus do gênero Lyssavirus, que são envelopados. E você se pergunta: e daí?

Deixa eu te explicar esses detalhes: Lyssa, em grego significa loucura, demência. Vírus, no latim, significa veneno! Lyssavirus! Quase todos os casos são fatais, porém cinco pessoas em todo o mundo conseguiram sobreviver, uma delas brasileira.  A primeira pessoa que se salvou foi submetida a um protocolo experimental que ficou conhecido como protocolo de Milwaukee. No Brasil, em 2008 um jovem, também de Pernambuco, foi submetido ao protocolo de Milwaukee adaptado, que ficou conhecido como protocolo de Recife. Todos os casos sobreviventes foram induzidos ao coma e com tratamento antiviral, conseguiram limitar o avanço da destruição do vírus rábico nas células nervosas do organismo. Esses tratamentos são uma luz no fim do túnel, porém aproximadamente 55.000 pessoas ainda morrem de raiva por ano no mundo.

E você continua se perguntando: mas e o envelope? Aguenta aí que já chegaremos lá.

O vírus da raiva poderia ser encontrado em quase todos os locais do mundo, exceto a Antártida e Oceania. Mas atualmente, alguns países conseguiram erradicar a doença de seus territórios, principalmente através de vacinação (exemplo: Nova Zelândia, Japão, Irlanda, os países escandinavos). A Australia consta na lista que o vírus foi eliminado, porém encontraram um outro tipo de lyssavirus por lá, o Australian Bat Lyssavirus que também é uma zoonose (pode infectar os seres humanos e animais).

Existem dois ciclos da raiva: a raiva urbana e a raiva silvestre. A raiva urbana tem como reservatório e transmissor principal o cão. Já a raiva silvestre, aqui no Brasil, o principal reservatório e transmissor é o morcego hematófago, aquele que se alimenta de sangue. As principais vítimas da raiva silvestre são os bovinos, suínos e equinos. Veja aqui alguns dados sobre a Raiva e a Pecuária Brasileira. O cão e o gato geralmente desenvolvem a “raiva furiosa”, agressividade e hipersensibilidade são alguns sinais. Já os herbívoros geralmente desenvolvem a raiva paralítica, quando a musculatura do animal vai paralisando. Aqui tem um resumo bem bacana dos principais sinais.

Parênteses aqui: Não vou escrever sobre os morcegos hoje, porque vale a pena um outro post sobre o assunto. Fecha parênteses.

Das aproximadamente 55 mil mortes humanas diagnosticadas no mundo, 95% delas são relacionadas ao ciclo urbano, ou seja, aos cães.

Lembra que ali acima eu contei que os 3 casos ocorridos no Brasil esse ano, foram relacionadas a variante do morcego? Então! Como explica?

Primeira coisa bem importante, bem importante mesmo: a vacinação preventiva de cães contra raiva vem sendo um sucesso no Brasil. Sucesso no sentindo que está funcionando muito bem e devemos continuar vacinando nossos cães.

Agora, vamos queimar fósforo juntos aqui: nos dois primeiros óbitos as pessoas tiveram acidentes diretamente com morcegos, o último caso a moça foi mordida por um gato. “Ah, Flávia, as duas primeiras pessoas eu estava lendo, moravam em áreas rurais!”. Sim, esse é um fator importante. Mas deixa eu te contar: os morcegos hematófagos tem seus hábitos e geralmente ERAM bem tímidos, não curtiam barulho, luminosidade qualquer. Mas então os bichos do mato que eles costumavam se alimentar estão sumindo; os seus locais favoritos na vida, seus habitats, estão cada vez menores, então eles estão se readaptando e se aproximando cada vez mais das áreas com seres humanos. Isso faz com que aumente a possibilidade de um ser humano entre em contato com um morcego doente.

“Mas hein, Flávia, e a moça da cidade mordida por gato?”. Os morcegos estão se aproximando de onde tiver comida e abrigo, certo? Certo. Este local pode ser a cidade também, né?. “Mas onde é que o gato entra nessa história?”. Vamos lá: gato caça! Pensa num bicho que caça! Mesmo os gatos de apartamento. Gato caça barata, rato, folha seca, passarinho, formiga, seus dedos digitando, qualquer coisa que se movimente minimamente. Inclusive morcego. Inclusive um morcego meio bobo que caiu de paraquedas no seu apartamento telado.

Vale dar um pulinho na vida dos morcegos e dizer que os morcegos hematófagos podem entrar em contato com os outros vários tipos de morcegos (os que se alimentam de frutas, insetos, etc) que estão mais próximos de nós, e acabar infectando-os com o vírus da raiva também.

Bom, estamos entendendo como funcionam essas transmissões. “Ah Flávia! Apocalipse total agora, é?”.

Vamos respirar fundo, porque o que parece ser difícil de se solucionar, na verdade, tá bem tranquilo graças a Pasteur <3

Pasteur desenvolveu uma VACINA antirrábica. E essa vacina foi adaptada, modificada e melhorada enormemente e hoje é nossa principal forma de prevenção da raiva. A raiva é uma doença fatal, mas totalmente prevenível! Tem vacina para seus cães, para meus gatos, para os rebanhos e também pra gente, em caso de necessidade.

Ficamos combinados: somos responsáveis por nossos animais, portanto vacinaremos todos anualmente!

“E o gatinho pra resgatar na rua? Vai deixar lá?”.

“Quem é que vai vacinar os animais de rua?”.

Devemos continuar resgatando os animais que necessitam de nossa ajuda sim. Use luvas, se proteja. E após TODO E QUALQUER procedimento LAVE AS MÃOS COM ÁGUA E SABÃO. Sim, água e sabão. Não é detergente, não é álcool gel, é SABÃO EM BARRA. “Ué, por quê?”. Lá em cima, quando falei que esse vírus é envelopado, era essa a surpresa! O envelope torna o vírus totalmente sensível ao sabão em barra que é cáustico. O vírus com seu envelope, entra em contato com o sabão e é morto! Rá!!! Então você consegue se livrar dos possíveis vírus que estão ali na superfície do corte, arranhão, mordida. Após esse procedimento, você se encaminha ao posto de saúde, explica bem direitinho qual a situação que ocorreu, se foi mordida, lambida, arranhão, como estava o animal, etc etc, que o pessoal do Pronto Socorro tem um Protocolo para vacinação de acidentes desse tipo. É de extrema importância fazer os dois passos: 1) Lavar a área com água e sabão 2) Dirigir-se urgentemente ao Posto de Saúde.

E os animais? Bom, infelizmente não existe tratamento para os animais que tem raiva. Nossa única opção é realmente a vacinação preventiva! Por isso mais uma vez o mantra: “somos responsáveis por nossos animais, portanto vacinaremos todos anualmente! ”

Outra coisa muito importante a ser feita é a castração dos animais. Cães e gatos devem ser castrados para que não haja uma superpopulação desses animais, aumentando assim o risco desses ficarem errantes, maltratados, sem vacinas e doentes.

Além disso, adotem animais! Isso ajuda o bichinho, ajuda a saúde pública, ajuda você!


Flávia Ward

Médica veterinária, guardiã de Popó, mestre em medicina veterinária preventiva, miçangueira intelectual, adora um dedim de prosa.