Contexto

A diminuição dos limites de velocidade nas marginais em São Paulo gerou discussões sobre a política de limites de velocidades no Brasil, sobretudo em áreas urbanas. Os dados mostraram uma redução no número de acidentes, no entanto os antigos limites voltaram a operar em janeiro de 2017. O objetivo deste texto não é apontar conclusões definitivas de políticas públicas, mas sim apresentar os diferentes aspectos desta medida.

É importante deixar claro de antemão quais são as características deste tipo de análise. Talvez não seja claro, mas tráfego e transporte são relacionados a economia e o isolamento de variáveis nem sempre é fácil. Em engenharia, por exemplo, podemos construir experimentos e analisar o efeito de determinadas variáveis separadamente. No tráfego, no entanto, quando é afirmado que o número de acidentes caiu 8% sobre o ano anterior ninguém pode afirmar qual seria o efeito se todos os carros tivessem ABS ou se o limite de velocidades fosse maior. Não é possível repetir o ano de 2016 novamente com outras características. A consequência disto é que os dados devem ser analisados de diferentes formas e uma conclusão se torna mais confiável à medida que diversos estudos chegam à conclusões na mesma direção.

 

Pela própria característica de ser difícil obter dados é comum transportar conclusões de estudos de países diferentes. Estados Unidos, Europa e Austrália são países que tem muito mais dados que países em desenvolvimentos como o Brasil e frequentemente dados destes países são utilizados para justificar políticas públicas no Brasil. É possível argumentar que os veículos são diferentes, as estradas são diferentes e sobretudo os carros são diferentes e portanto não podemos os utilizar como referência. Por outro lado, estes são os únicos dados disponíveis para nos embasar e portanto devem ser considerados, a menos que se passe a liberar verbas para pesquisas similares no Brasil.

Muito do que será discutido daqui para frente sofre destas limitações.

Quantificando Impactos

Boa parte da discussão gira em torno de duas variáveis: limite de velocidade e número de acidentes. Se todos os veículos trafegarem exatamente no limite de velocidade, as leis da cinemática nos diria o seguinte: se quiséssemos avaliar o impacto da redução do limite de velocidade entre dois valores, digamos v2 e v1:

 

– O tempo de viagem para uma certa distância seria T1 = D/v1 e T2 = D/v2 configurando uma relação inversamente proporcional. Reduzindo o limite de velocidade pela metade dobraria os tempos de viagem.

– A distância necessária para reduzir para parar ou reduzir a uma certa velocidade, digamos v_a, abruptamente é proporcional ao quadrado da diferença entre o limite e v_a. Por exemplo, se um veículo pode desacelerar a 5m/s² e deve reduzir para 10m/s (36 km/h). Estando a 20m/s (72 km/h) este veículo necessitaria de 30 metros. Estando a 30m/s (108km/h) este veículo necessitaria de 80 metros para reduzir.

 

Portanto a intuição nos diz o seguinte: tempos de viagem aumentam inversamente a redução do limite de velocidade; número de acidentes reduzindo de forma quadrática. Veremos a frente que estas relações fazem sentido, mas existem mais variáveis relacionadas e há casos que certas premissas não são válidas da forma como esperamos.

No entanto, é claro identificar o ponto central da discussão: existem objetivos conflitantes. É desejável menor tempo de viagem e para este fim seria melhor aumentar os limites de velocidade; por outro lado, é desejável menor número de acidentes e para este fim seria melhor reduzir os limites de velocidade. Onde estaria o ótimo?

 

As coisas ainda ficam um pouco mais complicadas porque ainda há outros, dentre eles:

  • Um aumento no limite de velocidade não significa que todos os veículos passarão a viajar na mesma velocidade. Em geral o aumento é relativamente baixo, por exemplo em algumas rodovias nos Estados Unidos um aumento de 55 milhas por hora para 65 milhas por hora (17%) levou a um aumento de 3% na velocidade média;
  • Além do maior limite de velocidade, acidentes estão relacionados a variação de velocidade entre veículos. Em geral, a dispersão de velocidade é menor quanto menor é o limite de velocidade;
  • Número de acidentes dependem também das condições de tráfego. Áreas congestionadas tendem ter mais acidentes, não só por ter mais “oportunidades” de acidentes devido ao maior número de veículos, mas porque tráfego congestionado tem mais oscilações (“anda e pára”, troca de faixas e etc). Além disso, em tráfego congestionado não é possível trafegar no limite de velocidade e portanto o efeito do limite de velocidade é menor
  • Não só o número de acidentes é um fator importante, mas a severidade dos acidentes também é um fator primordial. Velocidades maiores não só tendem a aumentar o número de acidentes, mas também aumentam o número de acidente graves.

 

Ainda, há impactos sobre outras variáveis. Frequentemente, os benefícios são quantificados com base nas seguintes variáveis:

  • Tempo de viagem;
  • Número de acidentes;
  • Consumo de combustível;
  • Emissão de poluentes;
  • Poluição sonora

Dos quais, os três primeiros seriam o que primariamente motoristas estariam interessados. No entanto, é importante frisar que é frequentemente assumido que motoristas são racionais e conseguem notar estas variáveis (como tempo de viagem e consumo de combustível), porém as mudanças são em geral marginais e dificilmente é possível notar diferenças. Os dois últimos, apesar da população em geral concordar com os benefícios, são considerados externalidades. Isto é, os poluentes interferem em todos, porém quem gerou a poluição não “sente” ou “paga” pela externalidade gerada.

 

Experiências Passadas

Neste tema o caso mais clássico são os Estados Unidos na crise mundial do petróleo em 1973. Como medida para mitigar os efeitos da alta do preço, o governo federal limitou as velocidades das rodovias em áreas rurais para 55 milhas por hora (mph), alguns estados tinham limites de velocidade de até 75 mph. O objetivo era diminuir o consumo de combustível.

A medida teve um interessante efeito colateral. O número de fatalidades reduziu de 54052 para 45146 (-16%). Um benefício de certa forma inesperado. A medida teve efeito até 1995 quando a lei foi revogada e os estados foram novamente definir limites de velocidades maiores. O efeito do aumento do limite de velocidade foi um aumentos na ordem de 15% no número de fatalidades.

Apesar das dificuldades comentadas de se isolar variáveis, este caso é algo bem próximo disto. Foi possível fazer dois estudos comparativos (antes e depois da diminuição; antes e depois do aumento) em dois momentos distintos com resultados na mesma ordem de grandeza. A velocidade média, no entanto, aumentou em torno de 2 a 3%.

Deve-se notar que estimativas de custo-benefícios onde variáveis são convertidas para valores monetários (custo de acidente, custo de vida, custo de tempo) mostraram que analisando todas as variáveis não era economicamente viável reduzir o limite de velocidade. A dificuldade destes estudos é definir estimativas para o custo de uma vida humana, dos custos de um acidente e de quanto os motoristas estão dispostos a pagar para diminuir o custo de viagem. Nessa época (década de 80), os impactos ambientais e sonoros em geral não eram levados em consideração. No entanto cabe ressaltar um estudo que estimou que os custos eram maiores que os benefícios quando o limite de velocidade é reduzido.

 

As conclusões de vários estudos mostram todas as dificuldades deste tipo de medida. É claro que leva a uma redução do número de acidentes. Por outro lado, não é claro se impacto total é maior do que os custos da medida. Importante salientar também que esse estudo é relacionado a rodovias em áreas rurais.

A lista abaixo mostra uma série de casos ao redor do mundo. Observe que é em geral não é citado o efeito na velocidade média e impactos ambientais, provavelmente devido ao custo de obter tais informações.

  • Austrália (1992) reduziu limite de 110km/h para 100km/h e acidentes com feridos reduziu em 19%;
  • Dinamarca (1990) reduziu de 60km/h para 50km/h nas vias urbanas, reduziu mortes em 24% e feridos em 9%;
  • Alemanha (1994) reduziu de 60km/h para 50km/h, redução em vias urbanas de 20% no acidentes;
  • Suécia (1990) reduziu de 110km/h para 90km/h em rodovias. Acidentes com morte reduziram 21% e a velocidade média reduziu em 14km/h
  • Suíça (1994) reduziu de 130km/h para 120km/h. As velocidades médias em 5km/h e acidentes com morte em 12%.
  • Grã-Bretanha (1991) redução de 100km/h para 80km/h, reduziu velocidade média em 5,2km/h e redução de 28% em acidentes com vítimas;
  • Estados Unidos (1989) com aumento de 55mph para 65mph, aumento de 21% no número de acidentes;
  • Uma série de estudos nos Estados Unidos entre 1992 e 1994 mostrou pouca diferença após um aumento.

 

Quanto ao efeito na velocidade média, alguns estudos mostraram que em geral o aumento de 55mph (89km/h) para 65mph (105km/h) leva a um aumento de 4mph na velocidade média.

O caso de São Paulo aparentemente vai em linha com a experiência mundial com redução significativa no número de acidentes. Infelizmente não consegui verificar dados relacionados a velocidade média ou tempo de viagem. Fazendo consultas em alguns relatórios da CET, a velocidade média na marginal pinheiros já é bem menor do que o limite (em um caso na rota 38 em 2016 a média é em torno de 49km/h), portanto provavelmente o efeito da velocidade média foi pequeno.

E então qual é o limite de velocidade ótimo?

A escarcidade de dados detalhados não é exclusividade brasileira, inclusive em países desenvolvidos é difícil realizar uma análise econômica confiável e detalhada levando em consideração todos os aspectos. No entanto, alguns modelos matemáticos podem ser integrados de forma a obter certas estimativas. Uma forma de obter dados para um caso real é com simulação de tráfego.

Neste tipo de estudo é assumido que temos completa informação de um cenário, incluindo renda de cada indivíduo, característica de emissão por tipo de veículo, rotas e característica das vias. Obviamente o cenário formado não pode ser considerado completamente fidedigno do caso, mas por outro lado é possível extrair informações detalhadas de um caso hipotético.

 

Um estudo recente deste tipo tentou integrar diferentes modelos para tentar estimar qual seria a velocidade média ótima dado uma série de premissas. Levando em consideração tempo de viagem, número de acidentes, emissão de poluentes e consumo de combustível. O gráfico abaixo foi extraído desse estudo.

Custos totais em função de velocidade média. Retirado daqui.

Neste estudo foi alcançado 72km/h como socialmente ótimo. Quando se exclui as externalidades (isto é, o efeito causado por um motorista que é sentido por todos), o limite de velocidade seria de 80 km/h. O gráfico abaixo mostra os diferentes elementos do custo total.

Evolução de cada parcela do custo em função do limite de velocidade. Retirado daqui.

Mais uma vez, é importante ressaltar que isso deve ser estudado caso a caso. O modelo utilizado pode ser o mesmo, mas os dados de entrada variam de país para país e até cidade para cidade. No entanto, neste estudo foi utilizado dados de uma economia média (Irã). Em países mais ricos como Noruega e Suécia a mesma análise levaria a valores em torno de 20% maiores de acordo com os autores.

 

Por fim gostaria de dizer que há vários elementos técnicos em uma análise, porém existem fatores políticos. O quanto aceitamos números de acidentes maiores por uma redução do tempo de viagem é de certa forma arbitrário e/ou político. Da mesma forma, estimativas do custo ambiental também tem uma certa dose de julgamento. No entanto, os objetivos e os resultados de cada medida podem e devem ser mais detalhados para posterior avaliação.

 

Referências:

Abaixo duas referências que dão boa introdução ao assunto um mais técnico e outro mais acessível:

Página em inglês da Wikipedia sobre limite de velocidade

Relatório da administração federal de rodovia dos Estados Unidos.