“Não, eu não tô falando desse mercúrio. Por que o elemento Hg é o único metal líquido à temperatura ambiente?”

O mercúrio tem ponto de fusão em −38°C, que é abaixo da temperatura ambiente, por isso ele é líquido.

“Mas isso não explica nada. Por que o ponto de fusão do mercúrio é tão diferente dos outros metais?”


O mercúrio é um elemento do grupo 12, junto com zinco e cádmio. O ponto de fusão dos metais deste grupo já é bastante baixo quando comparados com os outros metais.

 

Ponto de fusão (°C) Primeira energia de ionização (kJ/mol) Raio atômico (pm)
Zn 419,5 906,4 134
Cd 321,07 867,8 151
Hg −38,83 1007,1 150

 

O esperado é a diminuição na energia de ionização (energia necessária para remover um elétron do átomo) de cima para baixo no grupo, já que o átomo mais pesado geralmente é mais volumoso, seus os elétrons estão mais afastados do núcleo, fica mais fácil remover um elétron. Esse é o comportamento observado entre o Zn e Cd, mas a energia de ionização do Hg é ainda maior que a do Zn.

O raio atômico dos elementos mais pesados tende a ser maior. Com mais elétrons na eletrosfera, eles precisam ocupar um volume maior para equilibrar a repulsão coulômbica entre eles. É o que se observa quando comparamos Zn e Cd, mas o Hg novamente apresenta comportamento oposto: o Hg tem 32 elétrons a mais que o Cd, mas eles são quase do mesmo tamanho.

Para começarmos a entender esse comportamento anômalo, vamos olhar a distribuição eletrônica do Zn, Cd e Hg:

Zn: [Ar] 3d10 4s2

Cd: [Kr] 4d10 5s2

Hg: [Xe] 4f14 5d10 6s2

Esses três elementos tem orbitais eletrônicos completos, o que dá bastante estabilidade a eles (de forma similar aos orbitais e camadas eletrônicas completas dos gases nobres). O resultado disso é o ponto de fusão do Zn, Cd e Hg ser muito menor que outros metais.

Mas o Hg tem um diferencial, além dos orbitais “d” e “s”, ele possui orbitais “f” completos, que causam um efeito chamado “contração dos lantanídeos”.

Os elétrons de camadas mais internas anulam parte da carga nuclear “percebida” pelos elétrons das camadas mais afastadas do núcleo

Os elétrons nas camadas mais internas causam um efeito de “blindagem” no núcleo atômico, de forma que a carga nuclear “percebida” pelos orbitais mais afastados seja menor que a carga real. Dessa forma, os elétrons que ocupam esses orbitais afastados são atraídos mais fracamente pelo núcleo. Esse efeito depende do tipo do orbital.

Os orbitais “s” possuem simetria esférica, elétrons de um orbital “s” blindam a carga nuclear de uma forma mais efetiva.

A geometria dos orbitais “p” é diferente, com um plano nodal passando pelo núcleo, a blindagem de um orbital “p” é menor que a blindagem de um orbital “s”. Os orbitais “d” blindam menos que os orbitais “p” e os orbitais “f” blindam menos que os orbitais “d”.

A força do efeito de blindagem dos orbitais pode ser resumida como: s > p > d > f.

Os orbitais “4f” do mercúrio não reduzem a carga nuclear de forma eficiente, então os elétrons dos orbitais “5d” e “6s” são atraídos pelo núcleo com mais intensidade. Isso faz com que os elétrons fiquem mais próximos ao núcleo, reduzindo o raio atômico e aumentando a energia de ionização. Com os elétrons mais próximos ao núcleo, a interação entre os átomos de mercúrio vai ser menor, a energia para desfazer um possível retículo cristalino é menor e o ponto de fusão é baixo.

Mistério resolvido, certo? Não totalmente. O ponto de fusão do mercúrio, quando calculado teoricamente, seria 82°C, que faz sentido quando comparado com os outros elementos do grupo 12 (Zn e Cd), mas ainda bem distante do ponto de fusão real observado experimentalmente.

Existe outro efeito que influencia o ponto de fusão do mercúrio, um efeito relativístico.

Os elétrons que orbitam o núcleo se movem numa velocidade proporcional à carga nuclear. O Hg tem um núcleo atômico tão grande que os elétrons das camadas mais internas se movem numa porcentagem significativa da velocidade da luz. Os elétrons de um átomo de Hg, no orbital “1s”, por exemplo, se movem à 58% da velocidade da luz.

Essa alta velocidade faz os elétrons se comportarem como se tivessem mais massa e eles ficam ainda mais próximos ao núcleo. A energia para retirar um elétron na última camada é maior, os átomos de Hg interagem menos, e o ponto de fusão é ainda mais baixo.

E é essa soma de fatores que faz com que o mercúrio seja o único metal líquido à temperatura ambiente.

“Tá, espera um pouco, isso explica o comportamento do mercúrio, mas eu tô vendo na minha tabela periódica aqui e o ouro e o tálio são dois elementos próximos do mercúrio. Eles tem orbitais ‘f’ completos, tem massas atômicas próximas à massa atômica do mercúrio, o ouro e o tálio não deveriam ser líquidos à temperatura ambiente também?”

Vamos novamente comparar as configurações eletrônicas desses elementos.

Au: [Xe] 4f14 5d10 6s1

Hg: [Xe] 4f14 5d10 6s2

Tl: [Xe] 4f14 5d10 6s2  6p1

Os três possuem orbitais “f” completos, que estabilizam os orbitais mais externos, mas o ouro possui o orbital “6s” apenas meio completo, se outro elétron entrar nesse orbital, ele fica completo e se torna ainda mais estável, assim espera-se uma ligação metal-metal mais forte.

E o efeito relativístico também pode ser observado no Au. Os metais são prateados porque eles absorvem fótons de luz UV e refletem fótons do espectro visível. No átomo de Au os orbitais “d” e “s” estão mais próximos (em termos de energia) e ele absorve fótons de luz azul, refletindo luz amarela e vermelha, dando a sua cor dourada característica.

 

O efeito de blindagem reduz a diferença de energia entre os orbitais e a energia necessária para ocorrer transição eletrônica, E1 > E2. OBS: essa imagem é baseada no modelo de Bohr, que é uma representação bastante simplificada, os elétrons não são bolinhas e não ficam em órbitas circulares, além disso, num retículo cristalino, se fala em termos de bandas de energia e não orbitais atômicos, não deixe o seu professor de quântica ver isso.

No caso do tálio, seus elétrons do orbital “6s” apresentam baixa energia, mas o elétron no orbital “6p” é mais reativo que elétrons no orbital “6s”, pois os orbitais do tipo p possuem um plano nodal que passa pelo núcleo. O estado de oxidação mais comum do tálio é Tl+ e não Tl3+, como esperado quando se observa o alumínio e boro, que estão no mesmo grupo.

É a soma do efeito de blindagem e do efeito relativístico que explica o comportamento diferente desses metais e mostram mais uma vez que as teorias de Einstein estão corretas.

“Entendi, mas ainda tenho uma pergunta, quanto maior o núcleo, mais rápido os elétrons giram. Se você tiver um átomo muito grande, os elétrons podem girar na velocidade da luz?”

É uma ótima pergunta. No modelo de Bohr, quando um átomo tem número atômico maior que 137, os elétrons da camada “1s” estariam numa velocidade maior que a da luz. Richard Feynman mostrou que, pelas equações de Dirac, o limite do número atômico para átomos neutros é 137 (na verdade, o limite é 173, o núcleo desses elementos seria muito grande e não pode ser considerado um ponto).

Esses limites são extrapolações das teorias que nós conhecemos e teorias melhores, que expliquem o comportamento de átomos maiores, ainda podem ser descobertas e a tabela periódica não ter um limite.

 

Referências

CALVO, F. PAHL, E. WORMIT, M. SCHWERDTFEGER, P. Evidence for Low-Temperature Melting of Mercury owing to Relativity. Angewandte Chemie, 2013. Link.

Why is mercury a liquid at STP?

Would element 137 really spell the end of the periodic table?