Conforme comentei no post onde apresentei o site do Research Gate a vós, nobres bacharéis leitores do Deviante, estou dando seguimento à proposta de apresentar, para quem ainda não conhece, um pouco do lado de dentro da vida de um cientista, direcionando o foco mais especificamente à etapa de publicação dos resultados. Sim, porque ideias e experimentos todos temos e fizemos o tempo inteiro. Todavia, se estas ideias e resultados não forem conhecidos por mais ninguém nem tiverem a chance de serem testados e replicados por outras pessoas, bom, não servem para muita coisa! Portanto, hoje falarei sobre o processo de revisão de um artigo científico e no próximo texto esmiuçarei os detalhes sobre onde publicar seus trabalhos.


Comecemos pelo começo, então: a ciência só se define como tal se os resultados das pesquisas puderem ser usados de maneira geral, no maior número de situações possíveis, idealmente em todo o universo. Para resumir, a ciência vai atrás de leis abrangentes que servem em qualquer circunstância, e por isso, qualquer proposta de “lei geral” sobre como algo é ou funciona deve passar por um escrutínio minucioso e por testes rigorosos para que suas premissas sejam comprovadas ou refutadas. A refutabilidade foi proposta por Karl Popper como uma espécie de marca-d’água para se distinguir a ciência verdadeira da pseudociência. Certas áreas da atividade humana são classificadas como pseudociências justamente porque não é possível refutá-las de maneira efetiva. Seus seguidores se apoiam nas próprias crenças de sua funcionalidade e não nos fatos que comprovam sua ineficiência. Para não me alongar muito neste assunto, já que não é o tema principal do texto, recomendo um ótimo podcast sobre isso :-).

Titio Popper sabia das coisas (fonte)

Titio Popper sabia das coisas (fonte)

Voltando ao tema, como, então, estabelecer o divisor de águas sobre o que merece ser investigado mais a fundo do que merece ser descartado logo de cara por ser flagrantemente absurdo? Sim, porque obviamente uma triagem se faz necessária antes de sairmos testando qualquer ideia por aí. Não há tempo e nem recursos para isso. Por sorte, existem premissas que são ilógicas já na sua origem e não merecem sequer serem levadas a sério. Esta triagem inicial do que merece vir a público e do que merece a lata de lixo, por ser absurda demais, é feita por um processo chamado revisão por pares ou peer review.

Esta revisão acontece mais ou menos da seguinte forma: você submete a sua pesquisa a outros cientistas (os pares) com expertise semelhante a sua para que eles apreciem o que você desenvolveu. Estes pares vão fazer uma análise crítica de sua argumentação, tentando achar furos lógicos no seu raciocínio com o intuito de derrubar sua proposta. Se a ideia inicial for possível de acontecer (mesmo que improvável), passa-se a ver como ela foi testada, ou seja, que experimentos foram usados para evidenciar o que se queria. Se esta parte também tiver com tudo em dia (sem indícios de fraude, por exemplo), passa-se a ver a explicação do porquê isso pode ter acontecido, normalmente baseando-se em fatos já conhecidos e evidenciados por outros pesquisadores.

Se os pares acharem que todas estas partes estão de acordo, são lógicas e provam de fato a tese inicial, a pesquisa é publicada. Esta receita de bolo a ser seguida na análise de um artigo científico explica porque normalmente os artigos são escritos na forma de Introdução (embasamento teórico e apresentação da ideia), Material & Métodos (como ela foi testada), Resultados (o que se achou de fato com os testes) e Discussão (porque a ideia faz sentido ou não).

A partir da publicação, outros cientistas vão pegar esta mesma ideia e usar em outro contexto, replicando os experimentos e tentando derivar novas teorias ou tecnologias a partir daí. Este uso generalizado das ideias científicas serve como um atestado de sua veracidade ou não. Se os resultados de uma teoria científica não puderem ser replicados repetidas vezes ou se os mecanismos que explicam um fenômeno não se sustentarem, toda a comunidade científica fica de orelha em pé e começa a investigar mais a fundo, tentando achar indícios de fraude. Fraudes acontecem a toda hora e a todo momento e muitas delas geram bafafá até na mídia não especializada, quer seja pelo tamanho da cara-de-pau dos cientistas picaretas ou ainda pelas conseqüências práticas do desmascaramento de uma teoria outrora promissora.

Ou a teoria passa ou liga-se o alerta (fonte)

Ou a teoria tem consistência ou liga-se o alerta (fonte)

E esta avaliação é remunerada? Dá dinheiro, tipo “ganhe milhões sem sair de casa?” A resposta é um sonoro “NÃO”. O trabalho é totalmente voluntário, não se obtém nenhum ganho financeiro direto para avaliar o mérito de um artigo científico. Então, qual é o incentivo para que o “peer-review” não acabe? Por que perderei meu tempo avaliando os resultados de outro cientista, meu concorrente, ao invés de usar este tempo para produzir minhas próprias pesquisas? A resposta é prestígio (não, não é isso aqui). Quando você é convidado pelo editor de uma revista científica para avaliar um artigo, significa, entre outras coisas, que você é conhecido na sua área de atuação, possui um trabalho confiável e entende tão bem sobre determinado assunto que é capaz de avaliar se o que outra pessoa escreveu é factível ou não. E quanto maior for o prestígio de uma revista, maior se torna o seu prestígio. Imagine ser chamada para avaliar o mérito de um artigo submetido à Nature ou à Science, que são as revistas científicas mais prestigiosas atualmente? Significa que você está muito bem na fita, mano.

Para recompensar melhor esta tarefa de grande responsabilidade e que consome muito tempo e energia dos cientistas, algumas iniciativas têm sido tomadas para aumentar a visibilidade dos revisores. Uma destas iniciativas foi implantada pela editora de periódicos científicos holandesa Elsevier, baseado na ideia do cientista Simon Gosling, da Universidade de Nottinghan, Reino Unido. Desde 2014, a Elsevier mantém um sistema chamado Peer Review Platform que premia seus revisores com “badges” e certificados de reconhecimento, os quais podem ser incorporados nos seus currículos, além de descontos em vários serviços e produtos da Elsevier, como livros. Outras iniciativas também merecem ser citadas, como a Publon, que premia revisores de periódicos de qualquer editora (a Elsevier premia os de sua editora). Os prêmios são menções, certificados, licenças de softwares e descontos ou isenção em vários serviços como o Mendeley (mistura de rede social com organizador bibliográfico), GitHub (repositório de códigos de programação) e Amazon Web Service (serviço de nuvem do tio Bezos). Ah, e também dá camisetas.

Bem, amiguinhos, o que pudemos aprender ao final deste longo texto é que as teorias científicas precisam vir a público e serem massacradas impiedosamente para ver se suas premissas e resultados ainda assim se sustentam. Caso contrário, não é ciência verdadeira e sim qualquer outra coisa que se queira chamar. Muito deste trabalho de triagem quem faz são os revisores, que a troco de massagem no ego e umas bugigangas, como camisetas e balinhas (Sr. K™), separam o joio do trigo no universo gigantesco de experimentos e teorias científicas que surgem todos os dias.

É isso que você ganha ao ser revisor de artigos. A Jujuba talvez goste bastante deste prêmio (fonte)

Só se ganha isso como revisor. A Jujuba talvez goste bastante deste prêmio (fonte)

Fontes: lupa, Science